Carta escrita no século dezenove por John Nelson Darby (1800-1882) ao Editor de um de seus livros:
Meu caro amigo e irmão em Jesus Cristo,
Deu-me
muita satisfação ver sua tradução de meu livro. Tive o grato prazer de
lê-la, ou melhor dizendo, de ter alguém que a lesse para mim, naqueles
momentos dos quais o Senhor nos diz, como disse aos apóstolos, “Vinde
vós, aqui à parte, a um lugar deserto, e repousai um pouco” (Mc. 6:31).
Mas não posso deixar de dizer-lhe, meu caro amigo, que o prazer que a
aparência do seu trabalho me trouxe foi, em certa medida, abatido pela
opinião demasiado favorável que você expressou a meu respeito no
prefácio.
Antes que
tivesse lido uma palavra sequer de sua tradução, presenteei a um mui
querido e sincero amigo com um exemplar, e ele mencionou o que você
escreveu em seu prefácio louvando minha piedade. O texto produziu em meu
amigo o mesmo efeito que viria a produzir em mim, mais tarde, quando o
pude ler. Espero, entretanto, que você não leve a mal o que vou dizer a
respeito do assunto, o que é fruto de uma experiência razoavelmente
longa.
O orgulho é
o maior de todos os males que nos afligem, e de todos os nossos
inimigos, não apenas é o mais difícil de morrer, como também o que
tem a morte mais lenta; mesmo os filhos deste mundo são capazes de
discernir isto. Madame De Stael disse, em seu leito de morte, Sabe qual é
a última coisa que morre em uma pessoa? É o seu amor-próprio.” Deus
abomina o orgulho mais do que qualquer coisa, pois o orgulho dá ao homem
o lugar que pertence a Deus que está acima de tudo. O orgulho
interrompe a comunhão com Deus, e atrai Sua repreensão pois “Deus
resiste aos soberbos” (I Pd. 5:5). Ele irá destruir o nome do soberbo,
pois nos é dito que “a altivez do homem será humilhada, e a altivez dos
varões se abaterá, e só o Senhor será exaltado naquele dia” (Is. 2:17).
Como você
mesmo irá sentir, meu caro amigo, estou certo de que não há maior mal
que uma pessoa possa fazer a outra do que louvá-la e alimentar seu
orgulho. “O homem que lisonjeia a seu próximo, arma uma rede aos seus
passos” (Pv. 29:5) e “a boca lisonjeira obra a ruína” (Pv. 26:28). Você
pode estar certo, além do mais, que nossa vista é muito curta para
sermos capazes de julgar o grau de piedade de nosso irmão; não somos
capazes de julgar corretamente sem a balança do santuário, e ela está
nas mãos daquEle que sonda o coração. Não julgue nada antes do tempo,
até que o Senhor venha, e torne manifesto os conselhos do coração, e
renda a cada um o devido louvor. Até então, não julguemos nossos irmãos,
seja para bem seja para mal, senão com a moderação que convém, e
lembremo-nos que o melhor e mais certo juízo é aquele que temos de nós
mesmos quando consideramos aos outros melhores do que nós.
Se eu
fosse lhe perguntar como sabe que eu sou “um dos mais avançados na
carreira cristã, e um eminente servo de Deus”, sem dúvida você iria ficar
sem saber o que responder. Talvez você viesse a mencionar minhas obras
publicadas; mas será que você não sabe, querido amigo e irmão — você que
pode pregar um sermão edificante tanto quanto eu — que os olhos vêem
mais do que os pés alcançam? E que, infelizmente, nem sempre somos o que
são os nossos sermões? “Temos, porém, este tesouro em vasos de barro,
para que a excelência do poder seja de Deus, e não de nós” (II Co. 4:7).
Não lhe
direi a opinião que tenho de mim mesmo, pois se o fizer, é provável que
enquanto o faça procure minha própria glória, e, enquanto estiver
buscando minha própria glória, possa parecer humilde, o que não sou.
Prefiro dizer-lhe o que o nosso Mestre pensa de mim — Ele que sonda o
coração e fala a verdade, que é “o Amém e a fiel Testemunha”, e que tem
falado frequentemente no mais íntimo do meu ser, pelo que agradeço a
Ele. Creia-me, Ele nunca me disse que sou um “eminente Cristão e
avançado nos caminhos da piedade.” Ao contrário, Ele me diz bem
claramente que se eu procurasse o meu próprio lugar, iria encontrá-lo
como sendo o do maior dos pecadores, pelo menos dentre os que são
santificados. E devo dar mais crédito ao julgamento que Ele faz de mim,
meu caro amigo, do que aquilo que você pensa a meu respeito.
O mais
eminente Cristão é um daqueles de quem nunca se ouviu falar, algum pobre
trabalhador ou servo, para quem Cristo é tudo, e que faz tudo para ser
visto por Ele, e somente por Ele. O primeiro deve ser o último. Fiquemos
convencidos, meu caro amigo, de louvar somente o Senhor. Só Ele é digno
de ser louvado, reverenciado, e adorado. A Sua bondade nunca é
demasiadamente celebrada. O cântico dos abençoados (Apocalipse 5) não
louva a ninguém senão `Aquele que os redimiu com o Seu sangue.
Não há no cântico uma única palavra de louvor a qualquer dos redimidos
nenhuma palavra que diga que são eminentes, ou que não são eminentes
todas as
distinções estão perdidas no título comum, “os redimidos”, que expressa a
alegria e glória de todo o Corpo. Empenhemo-nos em trazer nossos
corações em uníssono com aquele cântico, ao qual todos esperamos que
nossas débeis vozes venham se unir. Esta será a razão da nossa alegria,
mesmo enquanto estivermos aqui, e contribuirá para a glória de Deus, a
qual é lesada pelo louvor que os Cristãos frequentemente prestam uns aos
outros.
Não
podemos ter duas bocas — uma para louvar a Deus e outra para louvar o
homem. Possamos, então, conhecer o que os serafins fazem (Isaías 6:2,3),
quando com duas asas cobrem suas faces, como um sinal de sua confusão
diante da sagrada presença do Senhor; com outras duas asas cobrem seus
pés, como se tentassem esconder de si mesmos os seus próprios passos; e
com as duas asas restantes voam para executar a vontade do Senhor,
enquanto proclamam, “Santo, santo, santo é o Senhor dos exércitos: toda a
terra está cheia da Sua glória”.
Perdoe-me
por estas poucas linhas de exortação Cristã, as quais tenho certeza,
irão, cedo ou tarde, se tornar úteis para você, passando a fazer parte
da sua própria experiência. Lembre-se de mim em suas orações, enquanto
rogo para que a bênção do Senhor possa pousar sobre você e seu trabalho.
Se você porventura vier a imprimir uma outra edição — como espero que
aconteça — por gentileza, exclua as duas frases para as quais chamei sua
atenção; e me chame simplesmente “um irmão e ministro no Senhor”. Isto
já é honra bastante, e não é preciso mais.
J. N. Darby
Nenhum comentário:
Postar um comentário